Thursday, June 08, 2017

Manifesto

Pela primeira vez na minha vida, e aos 36 anos, chumbei a uma cadeira de literatura. E estou indignado. Esta indignação tem a ver com vários factores, sendo que todos eles provêm da mesma fonte: o Professor (daqui em diante tratado por P.). Ora, que fique desde já estabelecido que eu também tive culpa, pois não me preparei convenientemente para a prova a que fui submetido, o que neste caso específico quer dizer que não li ou não consegui memorizar as opiniões dos críticos literários que, por sua vez, compõem a opinião de P.. Isto porque P. não tem opinião. Desde que haja “ensaio publicado”, P. anda feliz da vida.
Importa então esclarecer o conceito da palavra Literatura, que vem do latim litteratura, que significa “erudição; ciência relativa às letras”. Já a definição de professor, num qualquer diccionário, diz-nos que se trata de um “indivíduo que ensina bla bla bla” ou, no seu sentido figurado, “aquele que é versado ou perito (em alguma coisa)". Dois conceitos simples, portanto, e fáceis de entender. Importa também referir que, há 18 anos, quando estudava em “altura própria”, aprovei a duas cadeiras sobre o mesmo tema, ainda que com vertentes diferentes, e tendo como docente o supracitado P.  A Literaturas Estrangeiras de Língua Portuguesa tive 17 valores (depois de uma aposta com P., que dizia nunca ter dado mais do que 15 a um aluno), e a Teoria da Literatura (cadeira graças a Deus extinta do curso), tive 14 valores. Não menos importante, importa também destacar que, pela primeira vez na minha vida, estudei para uma cadeira de literatura. Sim, estudei! Fui ler o que os outros dizem sobre determinado autor, pois é certo e sabido que os “outros” sabem mais do que, mero alumnu, ou “criança que se dá para criar”. Não só estudei, como memorizei datas, conceitos e até algumas frases do autor que sei ser o favorito de P.. Para além disso, fiz uma timeline dos movimentos literários desde finais do século XIX até à modernidade (ainda que, nas aulas, não tenhamos passado dos heterónimos). Organizei cronologicamente os ditos movimentos e respectivas características, e comecei a suar quando me apercebi que seria impossível memorizar tudo. Passei horas na biblioteca a ler críticos que, quais cirurgiões da língua portuguesa, escreveram verdadeiros tratados sobre este e aquele autor. Curiosamente, creio não estar muito longe da verdade se disser que 80% desses autores nunca escreveram um romance na vida, ou um soneto, ou um conto, ou algo dotado de propriedades estéticas. Não. O que interessa é saber que a anti-semiose da hermenêutica constitui uma problemática metafísica, mormente na escrita de Fernando Sá-Carneiro, ou será Camilo Pessoa? Não sei, com termos tão “cultos” acabo por me baralhar. Entretanto, que fique claro que nada tenho contra o estudo da literatura na História, pois acho que faz todo o sentido. Contudo, creio que esse estudo não deve, de forma alguma, castrar a evolução do pensamento individual. Finalmente, uma referência às 45 horas de aulas que tive com P., todas elas passadas a ouvir P. a falar sobre determinado assunto. Sim, a falar. Não houve discussão, não houve alunos a ler, não houve as famosas fotocópias (entenda-se exemplos práticos do que se está a tratar). Nada. Houve a voz de P., nada mais. No final de cada aula, P. perguntava, com um sorriso escarninho: “têm dúvidas?”, e ninguém respondia. E eu também não ia responder, pois já havia cometido tamanha façanha, com apenas 19 anos, de dar voz à minha opinião durante uma aula de literatura. Ai de mim, que não tinha noção da minha falta de erudição.
Paro agora de divagar, para passar à parte em que me enfureço e, com o sapo engolido e bem preso na garganta, manifesto a minha frustração.


(Entro em fase de transformação, de enfurecimento do eu: qual Fernando Pessoa, exilo-me de mim e, através de café e chá verde, pois acabou-se-me o ópio, entro num estado de heteronímia enrubescida).


Ficas avisado, P. (o facto de não vires a ler isto não importa, pois o desconhecimento da lei não implica o seu não cumprimento). Faltam três semanas para o exame de recurso. Quando o for fazer, pois não tenho outro remédio, vou fazer questão de te agredir com o violoncelo do Pessanha, de te massacrar com a estátua falsa do Sá-Carneiro, de apascentar as tuas sensações, qual poeta bucólico “de espécie complicada”, mestre dos heterónimos, Alberto Caeiro. Vou fazer com que chova obliquamente naquilo que escrever e vou esfregar-te os érres e os vês de Álvaro de Campos na fuça (sim, se pensavas que terias direito à “Tabacaria”, desengana-te, não tens). Vou chamar o Horácio e transformar-me em Ricardo Reis, para te escrever uma Ode clássica, para poderes disseminá-la com algo escrito por outrem, que não tu, pois tu não tens opinião. Vou esquecer o simbolismo-decadentismo, metáfora perfeita da tua forma de ensinar, e vou imbuir-me do poder revolucionário modernista. Para tal, vou viajar no tempo e fazer o percurso entre 1912 e 1938, ano em que o neo-realismo começou a acenar e a dizer que o povo é quem mais ordena. Vou avançar ainda mais e, deixando para trás o surrealismo (pois para surreal já me chega a “tua” cadeira), e vou pedir ao Manuel Alegre que me escreva uma revolução de Abril, só para ti. Vou fazer tudo isto, e só não farei mais porque a folha de teste é limitada, caso contrário faria questão de continuar a dissecar décadas de escrita com opiniões que não são minhas.
Vou fazer tudo isto e mais, na esperança de que, como os presencistas, a literatura se torne numa “arte desvinculada”, quando finalmente me desvincular de ter de olhar para ti e de ouvir-te. Vou fazer tudo isto munido da minha experiência enquanto amante das letras, enquanto escritor (não com ensaio publicado, mas antes com OBRA publicada, por muito boa, ou má, que possa ser). Vou apostar em que a minha memória não me falhe e vou responder às perguntas que me fizeres com as opiniões dos outros. Vou guardar o meu orgulho bem guardado e fechar a minha opinião a sete chaves, pois ao escrever este “manifesto”, apercebi-me:


Tu não mereces a minha opinião.

6 comments:

z a i d a said...

Quem fala assim não é gago!!

Unknown said...

Eu disse (escrevi) noutro lado, orgulho? Queria dizer MUITO ORGULHO!

Anonymous said...

Esse p.deve ser filho da p

Rui Romano said...

Rui, o que escreves aqui não só demonstra um nível literário soberbo, como uma cultura absolutamente genial, como apenas alguns de nós sabemos que tu tens.
É um orgulho ler este fabuloso texto em tamanho e em qualidade.

Ziri, the warlock 😂 said...

Em bom português, é caso para dizer: ó P., vai pó caralho!

Anonymous said...

Já no meu tempo era assim ..... a minha defesa sempre foi o sono.
Só muito mais tarde me apercebi que era melhor o sonho e passei a ser livre!
José Benoliel