Tuesday, June 27, 2017

Querido Pê,

Em primeiro lugar, quero informar-te da tua evolução. Achei por bem tirar-te o ponto e acrescentar-te um acento todo catita, de seu nome circunflexo, pois julgo estar na ordem do dia um pequeno makeover à tua imagem. Passas assim, e sem mais delongas, a chamar-te Pê. Agora, adiante.
Antes de me pronunciar sobre o teste a que me submeteste hoje, e sem esquecer, de passagem, a longa conversa que tivemos no teu escritório, quero partilhar contigo o sonho que tive ontem, na malfadada noite que antecedeu o exame (sim, porque o nervoso miudinho típico dos exames não desaparece, independentemente da idade). Sonho caricato, esse que tive. Consistiu, basicamente, num espaço escuro, breu mesmo, onde se encontrava, bem no centro, o enunciado do exame. A primeira curiosidade foi o GIF que compunha o canto superior direito. Caso não saibas, GIF quer dizer Graphics Interchange Format, um nome pomposo como os que tu gostas, mas que significa tão simplesmente que o olhar se encontra perante uma imagem animada. E essa imagem, o que tinha? A tua cara, sorridente. Animada. Sorridente. Foi nesse momento que concluí - isto tudo dentro do sonho - que estava num pesadelo. Mas enfim, que a sustos deste tipo estou bem habituado. O resto do enunciado tinha apenas duas perguntas, e lembro-me de me questionar se o facto de teres reduzido o número de perguntas se prendia com a conversa que tivemos e sobre a qual, como já referi, mais à frente falarei. Do teor das perguntas não me recordo, mas estou certo de que seriam ao teu estilo: objectivas.
É com esta palavra, objectiva, que vamos avançar. Nos cinquenta minutos que estive no teu escritório, parei de te ouvir ainda não tinham passado cinco, quando me atiraste à cara, qual bofetada com as costas da mão, que as perguntas que tinhas feito no exame eram objectivas. Ora, ao ouvir isso, desliguei, pois não sou doutor, como tu. Se fosse, talvez tivesse o discernimento de perceber que a Literatura (exceptuando os romances de algibeira, vulgo bulas medicinais) NUNCA pode ser objectiva. Não pode! NUNCA! E não é preciso argumentos. Basta ler um livro. De qualquer forma, não fiques ensimesmado, que os quarenta e cinco minutos seguintes passei-os a apreciar a colecção de livros do teu colega (isto depois de te perguntar se eram teus, ainda que duvidasse muito que fossem). No final, e com ar preocupado, ainda me perguntaste se eu mudaria alguma coisa nas tuas aulas. O ímpeto que tive foi de responder que te mudaria a ti, mas não o fiz. Limitei-me a dizer que talvez, e apenas talvez, as aulas pudessem ser mais interactivas. Gaguejaste e disseste-me que isso não era possível, pois os alunos não lêem os textos em casa. Calei-me. 
Basicamente, e para acabar com esta parte, entrei e saí do teu escritório da mesma forma: exactamente igual. Ou seja, foi o mesmo que não ter lá ido.
No que diz respeito ao exame real, que fiz hoje, tenho a sensação de que não houve qualquer evolução, nem minha, nem tua. Fizeste efectivamente só duas perguntas, como eu tinha sonhado. Até aí tudo bem. A primeira pergunta era, como eu já esperava, objectiva. Mandavas-me analisar e interpretar um poema de Álvaro de Campos. Simples e fácil, como tu dirias. Até aqui tudo bem, ainda que uma perguntinha qualquer (nada que implicasse muito esforço da tua parte, claro) não ficaria nada mal. Uma coisa simples, do tipo: “Analise o poema em questão tendo em conta a fase pessimista do autor”. Ou melhor: “Tente expôr, por palavras suas, a problemática do “eu” na poesia de Álvaro de Campos, tendo sempre em conta este texto específico”. Parece-te complicado? A mim não. Mas eu não sou doutor (estou a tentar ser).
Mas tudo bem. Já fiz coisas mais difíceis do que analisar um poema sem qualquer tipo de direcção ou sugestão. A minha não-surpresa foi quando cheguei à segunda pergunta. Devo admitir que até foste simpático, pois deste-me a escolher entre duas. As opções eram, a saber: “Caraterize dois movimentos literários sobre os quais nunca falámos nas aulas, tendo em conta a perspectiva do crítico do qual nunca ouviu falar”. A segunda opção, pela qual optei, era mais fácil: “Comente o seguinte excerto de Gastão Cruz (poeta algarvio) sobre o tema do qual também não falámos nas aulas". Estou certo de que li um “desemerde-se” algures nas perguntas, mas não posso afirmar com certeza absoluta.
E assim passei eu mais duas horas do meu tempo na tua sala de aula, a fazer o teu exame. Se me pudesse avaliar a mim próprio, dar-me-ia vinte valores, mas eu sou suspeito, embora só pelo esforço me julgue merecedor de rebentar com a escala. Mas está bem, eu desço à Terra.
Saí do exame, mais uma vez, convicto de que fiz a minha parte. Estudei, li, interpretei. Fui ver palavras ao dicionário (não fui à net, fui mesmo ao livro, old school style). Passei horas na biblioteca a ler coisas que não me interessam e a tentar compreendê-las, na minha eterna inocência de estudante. Esquematizei, periodizei e sublinhei. Isto tudo, entenda-se, para estudar a “tua” literatura. 
Alguma coisa aprendi pelo meio, que não haja dúvidas disso. Mas depois de ler o teu exame cheguei à conclusão que não vale a pena. Por muito que estude ou que me esforce, nunca vou conseguir responder de forma satisfatória às perguntas que me colocas. Mas não faz mal, pois como um amigo (teu colega, já agora) me disse: “O que o Rui é - como estudante, como pessoa, como homem (no sentido humano da palavra)... É bastante mais importante do que qualquer «insónia roxa»…”. Por isso, crê-me com estima, acredita em mim, e passa-me com dez valores, que eu finjo ficar contente.


Senta-te comigo Lídia, à beira-rio, e esperemos, sem preocupações… pela nota.

Thursday, June 08, 2017

Manifesto

Pela primeira vez na minha vida, e aos 36 anos, chumbei a uma cadeira de literatura. E estou indignado. Esta indignação tem a ver com vários factores, sendo que todos eles provêm da mesma fonte: o Professor (daqui em diante tratado por P.). Ora, que fique desde já estabelecido que eu também tive culpa, pois não me preparei convenientemente para a prova a que fui submetido, o que neste caso específico quer dizer que não li ou não consegui memorizar as opiniões dos críticos literários que, por sua vez, compõem a opinião de P.. Isto porque P. não tem opinião. Desde que haja “ensaio publicado”, P. anda feliz da vida.
Importa então esclarecer o conceito da palavra Literatura, que vem do latim litteratura, que significa “erudição; ciência relativa às letras”. Já a definição de professor, num qualquer diccionário, diz-nos que se trata de um “indivíduo que ensina bla bla bla” ou, no seu sentido figurado, “aquele que é versado ou perito (em alguma coisa)". Dois conceitos simples, portanto, e fáceis de entender. Importa também referir que, há 18 anos, quando estudava em “altura própria”, aprovei a duas cadeiras sobre o mesmo tema, ainda que com vertentes diferentes, e tendo como docente o supracitado P.  A Literaturas Estrangeiras de Língua Portuguesa tive 17 valores (depois de uma aposta com P., que dizia nunca ter dado mais do que 15 a um aluno), e a Teoria da Literatura (cadeira graças a Deus extinta do curso), tive 14 valores. Não menos importante, importa também destacar que, pela primeira vez na minha vida, estudei para uma cadeira de literatura. Sim, estudei! Fui ler o que os outros dizem sobre determinado autor, pois é certo e sabido que os “outros” sabem mais do que, mero alumnu, ou “criança que se dá para criar”. Não só estudei, como memorizei datas, conceitos e até algumas frases do autor que sei ser o favorito de P.. Para além disso, fiz uma timeline dos movimentos literários desde finais do século XIX até à modernidade (ainda que, nas aulas, não tenhamos passado dos heterónimos). Organizei cronologicamente os ditos movimentos e respectivas características, e comecei a suar quando me apercebi que seria impossível memorizar tudo. Passei horas na biblioteca a ler críticos que, quais cirurgiões da língua portuguesa, escreveram verdadeiros tratados sobre este e aquele autor. Curiosamente, creio não estar muito longe da verdade se disser que 80% desses autores nunca escreveram um romance na vida, ou um soneto, ou um conto, ou algo dotado de propriedades estéticas. Não. O que interessa é saber que a anti-semiose da hermenêutica constitui uma problemática metafísica, mormente na escrita de Fernando Sá-Carneiro, ou será Camilo Pessoa? Não sei, com termos tão “cultos” acabo por me baralhar. Entretanto, que fique claro que nada tenho contra o estudo da literatura na História, pois acho que faz todo o sentido. Contudo, creio que esse estudo não deve, de forma alguma, castrar a evolução do pensamento individual. Finalmente, uma referência às 45 horas de aulas que tive com P., todas elas passadas a ouvir P. a falar sobre determinado assunto. Sim, a falar. Não houve discussão, não houve alunos a ler, não houve as famosas fotocópias (entenda-se exemplos práticos do que se está a tratar). Nada. Houve a voz de P., nada mais. No final de cada aula, P. perguntava, com um sorriso escarninho: “têm dúvidas?”, e ninguém respondia. E eu também não ia responder, pois já havia cometido tamanha façanha, com apenas 19 anos, de dar voz à minha opinião durante uma aula de literatura. Ai de mim, que não tinha noção da minha falta de erudição.
Paro agora de divagar, para passar à parte em que me enfureço e, com o sapo engolido e bem preso na garganta, manifesto a minha frustração.


(Entro em fase de transformação, de enfurecimento do eu: qual Fernando Pessoa, exilo-me de mim e, através de café e chá verde, pois acabou-se-me o ópio, entro num estado de heteronímia enrubescida).


Ficas avisado, P. (o facto de não vires a ler isto não importa, pois o desconhecimento da lei não implica o seu não cumprimento). Faltam três semanas para o exame de recurso. Quando o for fazer, pois não tenho outro remédio, vou fazer questão de te agredir com o violoncelo do Pessanha, de te massacrar com a estátua falsa do Sá-Carneiro, de apascentar as tuas sensações, qual poeta bucólico “de espécie complicada”, mestre dos heterónimos, Alberto Caeiro. Vou fazer com que chova obliquamente naquilo que escrever e vou esfregar-te os érres e os vês de Álvaro de Campos na fuça (sim, se pensavas que terias direito à “Tabacaria”, desengana-te, não tens). Vou chamar o Horácio e transformar-me em Ricardo Reis, para te escrever uma Ode clássica, para poderes disseminá-la com algo escrito por outrem, que não tu, pois tu não tens opinião. Vou esquecer o simbolismo-decadentismo, metáfora perfeita da tua forma de ensinar, e vou imbuir-me do poder revolucionário modernista. Para tal, vou viajar no tempo e fazer o percurso entre 1912 e 1938, ano em que o neo-realismo começou a acenar e a dizer que o povo é quem mais ordena. Vou avançar ainda mais e, deixando para trás o surrealismo (pois para surreal já me chega a “tua” cadeira), e vou pedir ao Manuel Alegre que me escreva uma revolução de Abril, só para ti. Vou fazer tudo isto, e só não farei mais porque a folha de teste é limitada, caso contrário faria questão de continuar a dissecar décadas de escrita com opiniões que não são minhas.
Vou fazer tudo isto e mais, na esperança de que, como os presencistas, a literatura se torne numa “arte desvinculada”, quando finalmente me desvincular de ter de olhar para ti e de ouvir-te. Vou fazer tudo isto munido da minha experiência enquanto amante das letras, enquanto escritor (não com ensaio publicado, mas antes com OBRA publicada, por muito boa, ou má, que possa ser). Vou apostar em que a minha memória não me falhe e vou responder às perguntas que me fizeres com as opiniões dos outros. Vou guardar o meu orgulho bem guardado e fechar a minha opinião a sete chaves, pois ao escrever este “manifesto”, apercebi-me:


Tu não mereces a minha opinião.