Pela primeira
vez na minha vida, e aos 36 anos, chumbei a uma cadeira de literatura. E estou
indignado. Esta indignação tem a ver com vários factores, sendo que todos eles
provêm da mesma fonte: o Professor (daqui em diante tratado por P.). Ora, que
fique desde já estabelecido que eu também tive culpa, pois não me preparei
convenientemente para a prova a que fui submetido, o que neste caso específico
quer dizer que não li ou não consegui memorizar as opiniões dos críticos
literários que, por sua vez, compõem a opinião de P.. Isto porque P. não tem
opinião. Desde que haja “ensaio publicado”, P. anda feliz da vida.
Importa então
esclarecer o conceito da palavra Literatura, que vem do latim litteratura, que significa “erudição;
ciência relativa às letras”. Já a definição de professor, num qualquer diccionário,
diz-nos que se trata de um “indivíduo que ensina bla bla bla” ou, no seu
sentido figurado, “aquele que é versado ou perito (em alguma coisa)". Dois
conceitos simples, portanto, e fáceis de entender. Importa também referir que,
há 18 anos, quando estudava em “altura própria”, aprovei a duas cadeiras sobre
o mesmo tema, ainda que com vertentes diferentes, e tendo como docente o supracitado
P. A Literaturas Estrangeiras de Língua
Portuguesa tive 17 valores (depois de uma aposta com P., que dizia nunca ter
dado mais do que 15 a um aluno), e a Teoria da Literatura (cadeira graças a
Deus extinta do curso), tive 14 valores. Não menos importante, importa também
destacar que, pela primeira vez na minha vida, estudei para uma cadeira de
literatura. Sim, estudei! Fui ler o que os outros dizem sobre determinado
autor, pois é certo e sabido que os “outros” sabem mais do que, mero alumnu, ou “criança que se dá para criar”.
Não só estudei, como memorizei datas, conceitos e até algumas frases do autor
que sei ser o favorito de P.. Para além disso, fiz uma timeline dos movimentos literários desde finais do século XIX até à
modernidade (ainda que, nas aulas, não tenhamos passado dos heterónimos).
Organizei cronologicamente os ditos movimentos e respectivas características, e
comecei a suar quando me apercebi que seria impossível memorizar tudo. Passei
horas na biblioteca a ler críticos que, quais cirurgiões da língua portuguesa,
escreveram verdadeiros tratados sobre este e aquele autor. Curiosamente, creio
não estar muito longe da verdade se disser que 80% desses autores nunca
escreveram um romance na vida, ou um soneto, ou um conto, ou algo dotado de
propriedades estéticas. Não. O que interessa é saber que a anti-semiose da
hermenêutica constitui uma problemática metafísica, mormente na escrita de
Fernando Sá-Carneiro, ou será Camilo Pessoa? Não sei, com termos tão “cultos”
acabo por me baralhar. Entretanto, que fique claro que nada tenho contra o estudo
da literatura na História, pois acho que faz todo o sentido. Contudo, creio que
esse estudo não deve, de forma alguma, castrar a evolução do pensamento
individual. Finalmente, uma referência às 45 horas de aulas que tive com P.,
todas elas passadas a ouvir P. a falar sobre determinado assunto. Sim, a falar.
Não houve discussão, não houve alunos a ler, não houve as famosas fotocópias (entenda-se
exemplos práticos do que se está a tratar). Nada. Houve a voz de P., nada mais.
No final de cada aula, P. perguntava, com um sorriso escarninho: “têm dúvidas?”,
e ninguém respondia. E eu também não ia responder, pois já havia cometido
tamanha façanha, com apenas 19 anos, de dar voz à minha opinião durante uma
aula de literatura. Ai de mim, que não tinha noção da minha falta de erudição.
Paro agora de
divagar, para passar à parte em que me enfureço e, com o sapo engolido e bem preso
na garganta, manifesto a minha frustração.
(Entro em fase
de transformação, de enfurecimento do eu: qual Fernando Pessoa, exilo-me de mim
e, através de café e chá verde, pois acabou-se-me o ópio, entro num estado de
heteronímia enrubescida).
Ficas avisado,
P. (o facto de não vires a ler isto não importa, pois o desconhecimento da lei
não implica o seu não cumprimento). Faltam três semanas para o exame de
recurso. Quando o for fazer, pois não tenho outro remédio, vou fazer questão de
te agredir com o violoncelo do Pessanha, de te massacrar com a estátua falsa do
Sá-Carneiro, de apascentar as tuas sensações, qual poeta bucólico “de espécie
complicada”, mestre dos heterónimos, Alberto Caeiro. Vou fazer com que chova obliquamente
naquilo que escrever e vou esfregar-te os érres e os vês de Álvaro de Campos na
fuça (sim, se pensavas que terias direito à “Tabacaria”, desengana-te, não
tens). Vou chamar o Horácio e transformar-me em Ricardo Reis, para te escrever
uma Ode clássica, para poderes disseminá-la com algo escrito por outrem, que
não tu, pois tu não tens opinião. Vou esquecer o simbolismo-decadentismo,
metáfora perfeita da tua forma de ensinar, e vou imbuir-me do poder
revolucionário modernista. Para tal, vou viajar no tempo e fazer o percurso
entre 1912 e 1938, ano em que o neo-realismo começou a acenar e a dizer que o
povo é quem mais ordena. Vou avançar ainda mais e, deixando para trás o
surrealismo (pois para surreal já me chega a “tua” cadeira), e vou pedir ao
Manuel Alegre que me escreva uma revolução de Abril, só para ti. Vou fazer tudo
isto, e só não farei mais porque a folha de teste é limitada, caso contrário faria
questão de continuar a dissecar décadas de escrita com opiniões que não são
minhas.
Vou fazer tudo
isto e mais, na esperança de que, como os presencistas, a literatura se torne
numa “arte desvinculada”, quando finalmente me desvincular de ter de olhar para
ti e de ouvir-te. Vou fazer tudo isto munido da minha experiência enquanto
amante das letras, enquanto escritor (não com ensaio publicado, mas antes com
OBRA publicada, por muito boa, ou má, que possa ser). Vou apostar em que a
minha memória não me falhe e vou responder às perguntas que me fizeres com as
opiniões dos outros. Vou guardar o meu orgulho bem guardado e fechar a minha
opinião a sete chaves, pois ao escrever este “manifesto”, apercebi-me:
Tu não mereces a
minha opinião.
6 comments:
Quem fala assim não é gago!!
Eu disse (escrevi) noutro lado, orgulho? Queria dizer MUITO ORGULHO!
Esse p.deve ser filho da p
Rui, o que escreves aqui não só demonstra um nível literário soberbo, como uma cultura absolutamente genial, como apenas alguns de nós sabemos que tu tens.
É um orgulho ler este fabuloso texto em tamanho e em qualidade.
Em bom português, é caso para dizer: ó P., vai pó caralho!
Já no meu tempo era assim ..... a minha defesa sempre foi o sono.
Só muito mais tarde me apercebi que era melhor o sonho e passei a ser livre!
José Benoliel
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